O assunto há muito tempo é motivo de piada, mas, apesar da evolução tecnológica, a medicina e, principalmente, a administração de remédios ainda esbarra na péssima caligrafia dos médicos. Não é raro encontrar em farmácias quem já tenha retornado sem o medicamento pela impossibilidade de o atendente, mesmo farmacêutico, de traduzir os traços e rabiscos que, normalmente, vêm acima do carimbo e da assinatura, ainda mais ilegível, dos diversos especialistas da área médica.
É bem verdade que a utilização de computadores e programas especializados para a prescrição de receitas reduziu os transtornos nos balcões das farmácias, mas o problema ainda consome a paciência dos balconistas. Terezinha Sales, 53 anos, é auxiliar de enfermagem e atendente de uma farmácia na Pituba e conta que as receitas ilegíveis "diminuíram bastante".
Segundo ela, a resistência ao computador ainda é grande, mas alguns médicos estão adotando letra de forma para facilitar a compreensão. Mesmo assim, ela já deixou de concretizar algumas vendas pela absoluta impossibilidade de identificar o remédio solicitado. "Já teve caso de o paciente ligar para o médico e nem ele lembrar o que passou".
Em outro estabelecimento, a farmacêutica Flávia Alves confirma a dificuldade exposta pela colega. "O principal problema é com relação à dosagem", revela. Ela explica que, se não consegue chegar a uma conclusão sobre o que está escrito, prefere não vender. "Muitas vezes, a gente descobre conversando com o paciente, dependendo da indicação do remédio, mas também acontece de ter que voltar ao consultório", relata, destacando a maior dificuldade para pacientes do SUS e de emergências hospitalares. "Quando é clínica particular, vem o telefone na receita, mas se for SUS o paciente tem que voltar ao consultório e conseguir se consultar com o mesmo médico".
Na central de uma das maiores redes de farmácias de manipulação, o problema da caligrafia dos médicos é ainda mais evidente. Como todas as receitas são digitadas e cadastradas, com nomes de médico, paciente, registro profissional e cada substância requisitada, é comum ter que contatar os emitentes das receitas para esclarecer as mais diversas dúvidas. "Até mesmo uma incompatibilidade técnica entre as substâncias ou a solicitação de um cliente de trocar um creme por gel tem que ser comunicada", explica Rosana Amorim, gerente técnica da Fórmula. "O contato com o médico é regra".
Tradutores - Na prática, são mesmo os balconistas que acabam resolvendo os verdadeiros enigmas que são certas receitas médicas. Os pacientes não hesitam em pedir ajuda a eles. O engenheiro Luís Antônio Cabral, 58, reconhece que não consegue entender o que seu médico escreve. "Geralmente, eu dou para o pessoal da farmácia identificar". Camila Souza Cruz, 24, é estudante e além da dificuldade para saber o nome do remédio se queixa da falta de orientação sobre o uso. "Já tive que voltar no médico para saber o que estava escrito".
A letra ilegível pode até mesmo custar a perda de pacientes. Marilene Santos, 33, pedagoga, mudou de médico porque não conseguiu entender uma receita e teve que voltar ao consultório. "Hoje meu médico tem uma letra mais legível". A psicóloga Graziela Pedreira, 58, é filha de médico e garante que a letra do pai era bem legível. Para ela, a questão da caligrafia é fruto do hábito. "Como tudo hoje é feito às pressas, o médico atende correndo, resulta nisso aí".
Consultas superficiais
A tese levantada pela psicóloga Graziela Pedreira procede e os próprios médicos reconhecem que a pressa acaba contribuindo para uma prescrição mal escrita – sem falar na superficialidade da consulta. A dermatologista Denise Amparo utiliza dois métodos de prescrição. Em uma das clínicas onde trabalha já pode utilizar o computador mas, na outra, continua preenchendo as receitas à mão. E já teve problemas com isso. "Às vezes, o atendente da farmácia não entende". Para ela, "consertar letra de médico é difícil" e mesmo com computador, as receitas controladas, que necessitam formulário específico, continuam sendo manuscritas. "Não é que o médico não saiba escrever, ele escreve rápido para otimizar o tempo, porque muitos pacientes são de convênio, que não pagam maravilhosamente bem".
O presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremeb), Jorge Cerqueira, reconhece a prática e afirma que o conselho condena não só as ''consultas-relâmpago" como determina que as receitas sejam prescritas de forma legível, embora não tenham que obrigatoriamente ser digitadas. Ele próprio ainda escreve as receitas a caneta, mas assegura a legibilidade das prescrições: "Minha letra nem parece de médico", brinca. Para ele, a finalidade da receita é permitir que o paciente leia e entenda não apenas qual é a medicação, mas também como usá-la.
Há dez anos, o pediatra Mário Henrique Guimarães encontrou a solução para tornar as receitas inteligíveis. Com um programa específico de computador, emite uma impressão com nome, dosagem, posologia e quantidade de caixas do medicamento para cada paciente. "Cada remédio tem um arquivo e você só atualiza de acordo com cada caso". Ele diz que o preço do programa, entre R$ 500 e R$ 600, se paga em menos de um mês com o tempo que se economiza nas consultas, possibilitando maior número de atendimentos, mas constata que muitos colegas ainda resistem ao avanço da informática. "Quando eles conhecem, vêem que é mais fácil".
Mas, mesmo quem já se rendeu às inovações da informática, ainda faz restrições ao receituário digital. A ginecologista Graça Azaro solicita todos os exames através do computador, mas na hora da receita, não abre mão de escrever de próprio punho. "Acho que personaliza mais, o exame normalmente tem poucas alterações, é só imprimir, mas a receita tem que ser explicada para o paciente. Se houver dificuldade, a farmácia liga para a gente".
Fonte: Correio da Bahia \ Panews
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