Farmácias usam CPFs de terceiros em fraude.
Dona Cecília tem 76 anos e sete filhos. Em 1991, fez uma operação para retirar o útero. Agora, a surpresa: documentos mostram que, no ano passado, Dona Cecília comprou, para consumo próprio, pílulas para não engravidar.
“A verdade pura: eu não compreendo o que é esse comprimido. Nunca vi na minha vida”, denuncia Cecília.
“Para que ela vai tomar uma coisa que não tem utilidade para ela?”, questiona Maria Helena Longarezi, a filha de Dona Cecília.
A família do carpinteiro José Menino Filho teve um susto ainda maior. Em um túmulo simples, sem placa, sem nome, está enterrado o corpo de José Menino Filho, que morreu no dia 6 de junho do ano passado, aos 82 anos.
O nome dele aparece em uma nota fiscal de compra de remédios contra pressão alta. O que chama a atenção é que essa compra foi feita um mês depois do sepultamento.
“Fui eu que o enterrei aqui”, conta o coveiro Mauro Oliveira.
Além da compra feita em 7 de julho do ano passado, existe outra, do mesmo remédio, no dia 16 de agosto, mais de dois meses depois do enterro de Seu José.
“Não é possível uma coisa dessas. Meu avô já morreu”, afirma Luciane dos Santos, a neta de José.
Segundo o Ministério Público, há fortes indícios de que os nomes e os CPFs do Seu José, da Dona Cecília e de, pelo menos, outras 50 pessoas de Nova Guataporanga, no interior de São Paulo, foram usados em uma fraude, com envolvimento de funcionários públicos e farmácias da região.
Uma das empresas investigadas fica na cidade de Dracena, a 30 quilômetros de Nova Guataporanga. As notas fiscais mostram que saíram do lugar os remédios contra pressão alta para o homem que já tinha morrido e os anticoncepcionais para Dona Cecília. Ela diz que nunca foi até lá pegar nada.
“Não sei nem onde fica a farmácia. Não sei nada”, revela Dona Cecília.
A empresa é cadastrada no programa “Aqui tem farmácia popular”, uma parceria do Ministério da Saúde com cerca de seis mil farmácias particulares em todo o Brasil.
Pelo convênio, os clientes têm desconto de até 90% no preço de quase 300 remédios contra diabetes, pressão alta e anticoncepcionais.
As farmácias não têm prejuízo. Elas recebem do Ministério da Saúde o valor integral do desconto dado ao cliente, mas são obrigadas a seguir uma série de regras.
“O cliente precisa se dirigir pessoalmente à farmácia, apresentar a sua documentação e o receituário médico”, explica José Nascimento Junior, diretor do Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde.
No ano passado, a farmácia da cidade de Dracena, suspeita de participar da fraude, recebeu do Ministério da Saúde mais de R$ 280 mil.
“O dinheiro público é um dinheiro de todos. Uma pena que a gente tenha ciência que está havendo uma série de distorções. Isso não é uma coisa pontual”, lembra o promotor de Justiça Fernando Galindo Ortega.
Ao Fantástico, o dono da farmácia, Eduardo Reis, culpou a prefeitura de Nova Guataporanga:
“O pessoal da Secretaria de Saúde de Guataporanga trouxe uma lista de receitas e CPFs dizendo que eram pessoas usuárias dos medicamentos que constam no programa e pediram para ser entregues lá. Eles trouxeram o nome na receita e o CPF. Aí, já não tem como comprovar quem é quem”, afirma.
“A regra é: individualmente, cada usuário tem que ir ao estabelecimento de posse de sua receita e adquirir o seu produto”, esclarece José do Nascimento Júnior, do Ministério da Saúde.
No posto médico de Nova Guataporanga, a polícia apreendeu cerca de duas mil caixas de medicamentos sem nota fiscal. A investigação tenta descobrir se os remédios foram ou não desviados do programa “Aqui tem farmácia popular”.
A farmacêutica da Unidade Municipal de Saúde, Fernanda da Fonseca, diz que sabia da irregularidade.
“O secretário levava sem a nota fiscal. Fiz a denúncia ao Conselho Regional de Farmácia”, conta a farmacêutica.
Apesar de a farmacêutica alegar que não tem a nada a ver com o esquema e que até o denunciou, ela foi temporariamente afastada do cargo.
Nós tentamos falar com o secretário de Saúde, que é filho do prefeito de Nova Guataporanga. Everton Romaninni Freire chegou a dizer que iria telefonar para um advogado para decidir se gravaria entrevista, mas foi embora, pela porta dos fundos.
Procurado outras sete vezes, por telefone e pessoalmente, o filho do prefeito preferiu não se manifestar. O secretário de Saúde também foi temporariamente afastado das funções.
A prefeitura se comprometeu a ajudar nas investigações. O Ministério Público Federal pretende pedir, na Justiça, a devolução de todo o dinheiro usado para comprar os medicamentos de maneira irregular.
Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 600 farmácias cadastradas no programa já cometeram algum tipo de irregularidade na venda dos medicamentos mais baratos.
“Existe uma corja de maus elementos que estão colocando o plano a perigo”, declara Pedro Zidoi, presidente da Associação Brasileira de Comércio Farmacêutico (Abcfarma).
A Polícia Federal vai comandar as investigações em Nova Guataporanga. O Ministério da Saúde já suspendeu o convênio com a farmácia que vendeu remédio até para morto.
FONTE: Fantástico – Globo – 03-05-09
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